KABRAL KA MURI

«Quem Mandou Matar Amílcar Cabral»


sabe-se que pertencia a Inocêncio Cani o dedo que premiu o gatilho. Conhecem-se os nomes dos dois mais importantes cabecilhas da conspiração, Mamadou Turé e Aristides Barbosa…Sabe-se, onde, quando, como e porquê o crime ocorreu. Mas continua por descobrir com exactidão quem esteve por detrás destes três homens e mandou matar Amílcar Cabral naquela noite de 20 de Janeiro de 1973,na sua residência no bairro Minière, em Conakry. A lista de hipóteses é comprida e variada.”

(in «Quem Mandou Matar Amílcar Cabral» de J. Pedro Castanheira,Ed.Relógio D’Água-1995)

“…Amlicar Cabral explica como a luta de libertação é não só um facto cultural mas também um factor de cultura , ultrapassando assim o objectivo de movimentos como a Négritude e o Pana-Africanismo, que, para A. Cabral sofrem de uma fundamental limitação - o de terem sido concebidos em espaços culturais exteriores à África Negra.”

“Ninguém de boa fé pode negar que na derrota dos EUA no Vietname tenha desempenhado um papel fundamental a consciência nacional, a ideologia socialista dos tenacíssimos guerrilheiros vietnamitas…”

“De um ponto de vista mais especificamente social, um dos papéis mais relevantes da ideologia é o desenvolvimento no processo de formação nacional. As premissas de qualquer nação são, como é sabido, a comunidade étnica, constituída através de séculos de história económico-política comum, a comunidade de interesses, de território, de cultura…”…”Assim se compreende como é sempre operante uma ideologia catalisadora (nacional ou não) em todos os movimentos de libertação do colonialismo” .

 difícil encontrar hoje um estudioso marxista que considere suficiente aquilo que os clássicos marxistas escreveram a respeito da colonização europeia em África, ou que não se ponha o problema de saber se é ou não oportuno aplicar à África ou à América Latina o mesmo esquema de análise das classes válido para a Europa”

“Para Frantz Fanon, a libertação do colonialismo é necessariamente um facto violento, um embate entre duas forças «congenitamente antagónicas» no qual o colonizado, se quiser vencer, não poderá contemporizar. Longe portanto daquele conceito «senghoriano» que consegue encontrar em De Gaulle um paladino da independência africana. Também Fanon é um defensor esforçado da recuperação da cultura nacional, mas contra a cultura colonial, opõe a luta armada de libertação como necessidade frente ao colonizador que jamais renunciaria de maneira indolor aos seus seculares privilégios”
(in «Sociologia da Negritude» de Maria Carrilho, Edições 70 -1976/Edi.Roma 1974)


Naquela noite de 20 de Janeiro, há 37 anos, foi assassinado um dos mais carismáticos e inteligentes, chefe e pensador, dos Movimentos de Libertação.

Matou-o o inimigo da Liberdade, interno ou externo, ao seu PAIGC, seu Partido e seu instrumento vital para que as populações da Guiné-Bissau e das ilhas de Cabo Verde assumissem a construção dos seus destinos. Amílcar Cabral afirmou sempre que a «unidade e a consciência nacionais são essenciais para o desenvolvimento das estruturas politicas, sociais e culturais da nação em formação.»

A.Cabral tinha perfeita consciência que uma vez alcançado o poder, o partido protagonista da independência (no qual a burguesia nascente africana tem muitas vezes um papel determinante) corre o risco de comportar-se como um partido étnico, dando lugar, não já não a uma ditadura burguesa mas a uma ditadura tribal: os ministros, os chefes de gabinete, os embaixadores, os prefeitos, são escolhidos na etnia do líder, por vezes mesmo da sua família.


A.Cabral não se queria impor recordando a sua vida ( e dos seus companheiros) como heróicos, recordando as lutas travadas em nome do povo…constituindo com isso uma cortina.


Para si a sua função sócio-política era criar à sua volta uma unidade nacional, aglutinar as várias tribos,agregar os vários estratos da população.


Não queria a unidade como um acordo de vértice entre vários senhores poderosos. Queria efectivamente a participação das gentes.


Há por isso analistas que viriam a considerá-lo como um visionário. E ainda mais depois do rumo seguido pelo PAIGC (já não o seu PAIGC) alcançado o poder e já depois do seu brutal assassinato, faz hoje 35 anos.

Fui coordenador de cooperantes técnicos na Guiné-Bissau entre 1978 e 1989.Assisti dez anos à construção e desconstrução dum país. Fiz “amigos” e “menos amigos” de entre os ex-guerrilheiros que passaram pelo governo ou por altos cargos em Bissau. Dos primeiros menciono: Vasco Cabral, Júlio Semedo, Carlos Correia, Manecas dos Santos,Mário Cabral, Paulo Correia(fuzilado em 1986),Fernando Fortes,Silvino da Luz, António Buscardini(morto em 1980),Otto Schacht(morto em 1980),Julio de Carvalho,Bartolomeu ,Bernardino,etc...dos segundos: Nino Vieiera,Vitor F.Manteiro, Saúde Maria ,C.Gomes Jr.,etc...


Posso afirmar que a morte de Cabral criou divisões e ressentimentos profundos que viriam a agudizar-se, após Novembro de 1980,e não mais abrandariam até aos nossos dias.


Como militar tive oportunidade de chegar à Guiné, muito com o terreno lavrado por Spínola, para o que viria a ser o “movimento de capitães”. A rebeldia do General abriu-nos caminho em Bissau e em Lisboa. Nenhum historiador lúcido pode retirar-lhe esse mérito. Goste-se ou não!


Como cooperante cheguei a Bissau e, pouco a pouco, me apercebi que as teses “idealistas” de Amílcar Cabral tinham sido mal assimiladas. Vencera-as o pragmatismo do Poder.

Esse pragmatismo é ter um Estado à semelhança dos outros, com um floreado, centro de mesa, que os governantes (ministros ou comissários) representam mais os seus embaixadores exportados para as capitais do mundo!


Amílcar Cabral queria refrear um tanto esta onda. Nem sequer era sua ideia que o governo tivesse logo sede em Bissau. Tinha uma concepção completamente revolucionária da “organização política da nação”( o Estado) a fugir dos tradicionais mananciais. Tese que me foi confirmada pessoalmente por muitos dos seus pares, como ,também pelo historiador/escritor Basil Davidson e por um investigador Padre Italiano, conhecidos em Mansoa e com os quais me correspondi algum tempo.

Amílcar Cabral era um revolucionário pedagogo, “ousava atingir o impossível”. Mesmo depois de morto e atingiu-o . Outros agarrados ao possível nem isso conseguiram. Exageraram no pragmatismo ou equivocaram-se no caminho.


Quanto às características principais da sua ideologia é bom sublinhar, num traço grosso e breve, as seguintes:

- independência de pensamento;

- a ligação estreita entre a realidade e a teoria;

- a coerência e consistência através do tempo.

Pôr-se-á em causa que a elaboração teórica de Cabral tenha partido de um esforço colectivo. Poderá haver algum cepticismo com a análise das contradições de classe que enredaram os Movimentos de Libertação após as independências.

Dizia Ronald Chilcote “...o processo social está dependente de um sistema de autoridade no qual o individualismo e o elitismo prevalecem na prática, mesmo se o pensamento de Amilcar Cabral insiste no estabelecimento de uma sociedade colectiva,na qual cada individuo deve participar.”

Quer isto dizer que não há necessariamente incompatibilidade entre estas duas situações, uma existente ,outra ambicionada, no imediato da acção.

No entanto não será que a contradição irá surgir mais tarde?

A eliminação de Cabral não terá provocado um vazio neste esquema prático?

Parece-nos que todos estarão de acordo em dizer que sim.


Mas a releitura de Cabral, com os dados sociais entretanto disponíveis, é, pois, uma modesta recomendação e hoje particularmente uma justa homenagem. Em sua memória.

texto de Manuel Duran Clemente
As crianças são flores


da inocencia
e a razão principal

da nossa luta